Por Luiz Cláudio Cunha
Publicado no Observatório da Imprensa,
em 26/jan/2010.
Capítulo de A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): História e Memória, 4 volumes, 40 autores, co-edição Escola do Legislativo “Deputado Romildo Bolzan” e Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2010; título original Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964, intertítulos do OI
Rio 40 graus.
O mundo inteiro sabe que o verão carioca é tórrido. Assim, o leitor mais atento da primeira página do Jornal do Brasil daquele sábado, 14 de dezembro de 1968, estranhou o quadro da previsão do tempo, publicado no canto superior esquerdo, ao lado do logotipo do mais influente jornal do país naqueles idos tão estranhos:
“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável.
O país está sendo varrido por fortes ventos.
Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras.”
No canto superior direito, outra informação inusitada: “Ontem foi o Dia dos Cegos”. A explicação para tal cegueira estava abaixo, na manchete sobre o fato do dia: “Governo baixa Ato Institucional e coloca Congresso em recesso por tempo ilimitado”.
Acontecera na véspera o golpe dentro do golpe de 1964, com a edição do AI-5, que escancarou a ditadura no Brasil. O locutor Alberto Curi, sentado ao lado do ministro da Justiça, Gama e Silva, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, leu o texto do ato em cadeia nacional de rádio. A fala do locutor ainda ecoava no ar quando cinco oficiais uniformizados do Exército – um major e quatro capitães – invadiram a redação do JB no Rio de Janeiro para censurar o noticiário.
Diante da ocupação, o editor-chefe Alberto Dines começou a trabalhar com o chefe de redação Carlos Lemos para encontrar maneiras de driblar o controle militar. O editorial censurado da página 10 foi substituído por uma foto vertical de arquivo em que um enorme campeão mundial de judô, numa brincadeira familiar, se deixava derrubar pelo filho pequeno e franzino. Uma fina alegoria que enganou a tesoura do censor. Mas Dines queria mais, para contornar o bloqueio da primeira página. Chamou o copidesque Roberto Quintaes e lhe pediu que recriasse a previsão do tempo com dois números cabalísticos: o 38, número do Ato Complementar que fechou o Congresso, e o 5, marca do ato que enterrou a liberdade. E assim nasceu, para a história do jornalismo brasileiro, a curiosa previsão de tempos em que o Brasil daquele verão esquisito oscilava dos 38º em Brasília para os 5º das Laranjeiras, sede do palácio carioca onde foi anunciado o AI-5. A nova versão do clima turbulento foi enxertada nas oficinas, quando o jornal já tinha sido censurado e a nota cifrada escapou da revisão dos militares para ganhar um espaço eterno na memória da luta contra a ditadura.
No dia seguinte, domingo, 15 de dezembro, Dines nem precisou se ocupar da edição. O Jornal do Brasil não foi impresso, como protesto pela ordem de prisão contra um de seus diretores, embaixador José Sette Câmara, ex-governador da Guanabara e aliado de Juscelino Kubitscheck. Era uma edição gorda de Natal, cheia de anúncios, que nem saiu da gráfica. Solidários, os anunciantes transferiram toda a propaganda para as edições seguintes [DINES, Alberto. AI-5, quarenta anos. Uma história para não esquecer. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 2008].
Fim da censura?
A meteorologia política do país piorou muito. O AI-5 durou 10 anos e, do olho do furacão autoritário, ventaram mais 12 atos institucionais, 59 atos complementares e oito emendas constitucionais. “Salvamos a democracia, voltando às origens do poder revolucionário”, discursou o general Arthur da Costa e Silva, falando ao país em cadeia no réveillon de 1968. Duas semanas mais tarde, em 13 de janeiro de 1969, o então coronel João Batista Figueiredo, mais tarde também presidente da República, foi bem mais sincero e preciso. Escrevendo ao capitão Heitor Ferreira, anos depois secretário particular dos generais Geisel e Golbery no Palácio do Planalto, Figueiredo chegou a antecipar o julgamento da história: “Os erros da Revolução [de 64] foram se acumulando e agora só restou ao governo partir para a ignorância”. [Portal Folha de S.Paulo – Especial 40 anos do AI-5. Site produzido pelos integrantes da 46ª. turma do Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha . Dezembro, 2008].
O peso maior da ignorância militar golpeou a classe política. O Congresso ficou fechado até outubro de 1969, quando reabriu para chancelar a escolha pelo Alto Comando das Forças Armadas do general Garrastazú Médici como sucessor do general Costa e Silva, vítima de um derrame. Cassou para isso quase três centenas de mandatos (111 deputados federais, cinco senadores, 162 deputados estaduais, 22 prefeitos, 23 vereadores), além de 28 funcionários do Poder Judiciário. Antes de completar um mês, o AI-5 decapitou três ministros do Supremo – Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva – e aposentou até um dos conspiradores de 64, o general Pery Constant Bevilacqua, ministro do Superior Tribunal Militar: “Dava habeas-corpus demais”, justificou uma fonte do Palácio do Planalto. Sessenta e seis professores foram expulsos das universidades, entre eles Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.
A primeira vítima da área cultural, sempre visada nos surtos autoritários, apareceu no dia seguinte à edição do AI-5. Na noite de sábado, 14 de dezembro, o comediante Ary Toledo fez uma piadinha no final do seu espetáculo, o show A criação do mundo segundo Ary Toledo, que estreava no Teatro de Arena, em São Paulo.
– Pessoal, este é um espetáculo subdesenvolvido. Não tem garotas de bunda de fora. No palco, somos eu e meu violãozinho, e só. Como diz o ditado popular: “Quem não tem cão, caça com gato. Quem não tem gato, cassa com o ato…”
Todo mundo riu, menos dois homens da platéia, que foram até o camarim pedir explicações. Eram agentes do DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, que levaram Toledo para a delegacia, na Praça da Luz. Ali ficou detido durante cinco horas, até ser liberado por um delegado que era seu fã, mas que antes lhe passou uma descompostura pela gracinha. Ditadura, como se sabe, é coisa séria.
A censura desembarcou com mais força nos jornais e revistas de Rio e São Paulo, centro político e econômico do país. No lugar de notícias, comentários e editoriais, começaram a proliferar versões de Camões n´O Estado de S.Paulo, receitas de bolo no Jornal da Tarde e imagens de diabos e da árvore símbolo da Editora Abril nas páginas da revista Veja. Era proibido deixar espaços em branco, a censura censurava a revelação sobre a censura. Preferia versos, receitas e imagens diabólicas nas páginas esquartejadas. O semanário Opinião sentiu a violência antes mesmo de estrear nas bancas. Em novembro de 1972, quando preparava seu número zero, a edição experimental, bastou a notícia do lançamento para alertar o governo. O decreto-lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970, estabelecia a censura prévia para matérias ofensivas “à moral e aos bons costumes”. Não reconhecia a censura política, que era inconstitucional. Ela existia apenas nos telefonemas discretos ou nos bilhetinhos sem assinatura enviados pelos funcionários quase anônimos do Sigab, o Serviço de Informação do Gabinete do Ministro da Justiça, um órgão secreto que fazia a ligação direta entre o ministro e a Polícia Federal.
Um telefonema do Sigab convocou o editor do Opinião, Fernando Gasparian, à sede da Polícia Federal no Rio. O major Braga tentou despistar:
– Eu quero avisar ao Sr. que aqui no Brasil não existe censura prévia, a não ser por problemas morais. O Sr. pode publicar o que quiser.
E tirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que a imprensa não podia publicar – por censura prévia ou autocensura. Gasparian pediu uma cópia para avaliar, o major negou.
– Ela é secreta. [PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Opinião x Censura. Momentos da luta de um jornal pela liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1978. p. 23]
Assim, secretamente, o regime asfixiou o semanário a partir do oitavo número. Primeiro, mandando recados. Depois, com o censor dentro da redação. Por fim, exigindo a remessa do jornal impresso para Brasília, antes de liberar a venda nas bancas. Em quatro anos e meio, Opinião sofreu ameaças, prisões, apreensões de edições inteiras, processos judiciais, o lançamento de uma bomba na redação e um decreto presidencial, baseado no AI-5, ratificando a censura prévia que o jornal tinha derrubado, como ilegal, no Tribunal Federal de Recursos. Foram publicadas 5.796 páginas, mas quase o dobro – 10.548 páginas – precisou ser produzido para suprir a falta do material vetado. Gasparian cansou da censura e, em 1° de abril de 1977, mandou para as bancas uma edição diferente da que enviara a Brasília para revisão. Corajosamente, incluía um editorial avisando ao regime que aquele seria o último número sob censura. Na semana seguinte, na edição nº 231, com uma ilustração do presidente e a manchete “Geisel, o AI-5 de novo” na primeira página, o jornal trazia um carimbo abaixo do título de Opinião: “Livre”. A primeira edição sem censura foi apreendida. O jornal nunca mais voltou às bancas.
Telefones grampeados
Estes são alguns dos momentos dignos de reação da imprensa brasileira à violência da ditadura, exacerbada a partir do AI-5. Mas o passado condena, na remissão das origens da conspiração que levou ao golpe de Estado de 1964. Nele está a digital da mídia que ajudou, por atos, fatos e versões, na criação do clima político que aguçou posições e lançou o país num abismo autoritário de 21 anos. A revisão da imprensa, a partir da radicalização do AI-5, que a fez engolir versos e receitas de bolo, não apaga seu envolvimento original no golpe militar. Ninguém dissecou isso melhor do que o professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003), doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Glasgow, Reino Unido. Em 1981, aos 36 anos, ele publicou no Brasil sua tese de doutorado produzida nos cinco anos anteriores na Escócia. O livro 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe (Ed. Vozes) é um trabalho literalmente de peso. Em suas 814 páginas, Dreifuss produziu um clássico de pesquisa histórica que confirma uma tese dos golpistas: 1964 não foi uma simples quartelada, muito menos um movimento improvisado de um general impulsivo que de repente botou os tanques nas ruas de Juiz de Fora, na madrugada de 31 de março.
Como na loucura de Hamlet, havia método na ditadura. E muita organização, preparo, cálculo, frieza, tática, estratégia – e dinheiro, muito dinheiro. A história do golpe remonta ao fracasso do golpe anterior, o de 1961, quando os ministros militares tentaram vetar a posse constitucional do vice-presidente João Goulart, alçado ao poder pela renúncia de Jânio Quadros. A reação popular e a firme resistência do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, quebrando a unidade militar, fizeram vitoriosa a “Campanha da Legalidade”. Jango tomou posse e os generais compreenderam que, sem o apoio da opinião pública, o golpe não passaria. Três anos antes dos tanques rolarem sobre Juiz de Fora, os militares começaram a tramar com os recursos e a organização do empresariado brasileiro o golpe final que os levaria ao poder por duas décadas. E a grande imprensa estava lá, na trincheira da conspiração.
A releitura de Dreifuss, mais do que revelar, permite relembrar fatos decisivos que o tempo e a memória vão apagando. Em novembro de 1961, três meses após a renúncia de Jânio, nasceu no Rio o IPES, Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Reunia a nata do empresariado, nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Um empresário de origem americana no Rio, Gilbert Huber Jr., dono das Listas Telefônicas, articulou-se com um empresário de uma multinacional em São Paulo, João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-presidente do Banco do Brasil no Governo Jânio e tio do futuro presidente Figueiredo. Acabaram recrutando militares da reserva, um deles o general Golbery do Couto e Silva.
Parecia um inocente clube de homens de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia nacional para combater, de forma clandestina, os seus três principais inimigos: o Governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo, que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do IBAD em 1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160 parlamentares da centro-direita no Congresso reunido em torno da UDN, PSD e PSP. A ADP fazia contraponto à Frente Parlamentar Nacional, que orbitava no universo do PTB e dos aliados da esquerda. Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana focada em campanhas políticas e grupos de pressão [DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 3. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1981, p.103].
Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico, e o IBAD, como uma unidade tática. O gaúcho Raul Pilla, líder do Partido Libertador que integrava a ADP, definiu o complexo: “Duas instituições muito úteis foram organizadas… levando-as a cumprir seus deveres patrióticos” [PILLA, Raul. A influência do dinheiro. O Globo, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963]. O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80 membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36 líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se espalhava pelas capitais do país. Em Porto Alegre, a versão local tinha o nome de IPESUL e sobrenomes ilustres como o lojista Fábio Araújo Santos, da rede JH Santos, José Zamprogna e Ary Burger, diretor do Grupo Gerdau.
A articulação dos empresários com os militares era feita pelo Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre) Exércitos. A “ordem de serviço com calendário” do GLC, que definia a estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte, avaliando a atividade “comunista” no país, apontando o dedo para subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações. Só no Rio de Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados [DREIFUSS, op. cit., p. 188]. O grupo do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27° andar do Ed. Avenida Central, na av. Rio Branco, no centro da cidade. A conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique Geisel, irmão de Ernesto. Em Porto Alegre, o IPESUL operava no quarto andar do Ed. Palácio do Comércio, na Praça da Alfândega.
Três frentes
O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país, um total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500 artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras. O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES tinha vergonha do que fazia. Proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como “Escritório de Brasília”. Ele coordenava a campanha anti-Jango na capital, mas quem aparecia publicamente era o IBAD e o fazendeiro baiano João Mendes, deputado udenista e líder ostensivo da Ação Democrática Parlamentar. O plano era simples e mortal: o IPES, através do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo. A inércia legislativa levaria ao clamor popular pelo poder “moderador” das Forças Armadas, única instituição capaz de tirar o país daquele atoleiro fabricado pela conspiração no Parlamento.
Neste trabalho era fundamental manipular a expressão da sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita. Dissimulado, o grupo evitava o nome “opinião pública”, preferindo as expressões “divulgação” e “promoção”. O GOP era “a base de toda a engrenagem”, definia o general Heitor Herrera, um dos líderes do IPES. José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que “conquistar a opinião pública” era a essência da ação política do grupo. O principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José Fonseca, que estreara como “tira” no 16° Distrito Policial de São Cristóvão, um subúrbio operário da zona norte do Rio, no réveillon de 1952.
Ele tomava um copo de leite em Copacabana na noite de 5 de agosto de 1954 quando ouviu a cerca de 100 metros o som de tiros. Por pouco não viu o tiroteio da rua Toneleros, o atentado que deu um tiro no pé de Carlos Lacerda, matou o major Rubens Vaz e 19 dias depois disparou a bala fatal do suicídio de Getúlio Vargas. Quatro anos depois trocou a delegacia por um cargo de relações públicas da Light, a empresa americana de energia que se tornaria uma das líderes do IPES e da conspiração. Em 1963, um ano antes do golpe, o ex-comissário José Rubem Fonseca deu aos 38 anos seu primeiro tiro certeiro na literatura: lançou o livro de contos Os prisioneiros com o nome literário de Rubem Fonseca. O festejado autor de Feliz Ano Novo, A grande arte e Bufo & Spallanzani tornou-se nas décadas seguintes o maior contista vivo do país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, uma espécie de Nobel para escritores da língua portuguesa.
Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil. Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os dois nomes centrais do Repórter Esso da TV Tupi, o equivalente ao Jornal Nacional de hoje, patrocinado pela Esso do Brasil, membro importante do IPES.
Em tempos sem e-mail ou twitter, o GOP se valia da tecnologia da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas telefônicas, antecipando em décadas o advento do infame telemarketing. Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações de rádio e TV mobilizadas pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE, Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso pelo país. Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-comissário e contista Rubem Fonseca, que incluía intelectuais respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e Rachel de Queiroz, prima do general Castello Branco, líder do golpe que derrubou Jango. Dez anos antes de Fonseca, a cearense Rachel foi a primeira mulher a ganhar o Prêmio Camões, reconhecimento a uma obra consistente que começou em 1930, aos 20 anos, com O Quinze, romance realista que mostra a luta do povo do sertão nordestino contra a miséria e a fome. Dois anos antes, antecipando seu viés literário, ela formava o primeiro núcleo do Partido Comunista em Fortaleza. Rachel de Queiroz foi presa no golpe do Estado Novo, em 1937, acusada de subversiva, e teve seus livros queimados. Um quarto de século depois, a comunista de Fortaleza era uma intelectual engajada na equipe de propaganda de direita de Rubem Fonseca no IPES. O primo Castello Branco, já ex-presidente, morreu num acidente aéreo em 1967 quando retornava de um passeio à fazenda da prima Rachel.
Os propagandistas do GOP atuavam em três frentes: artigos para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada. Em comum, eram todos anticomunistas, antitrabalhistas e antipopulistas. Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia. Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da chamada “literatura democrática”.
Sinal verde
Em janeiro de 1963 a demanda por recursos era tão grande que o comando do IPES decidiu aprovar uma contribuição anual padrão de meio por cento do capital de cada sócio. O caixa 2 ou “contabilidade paralela” da entidade já somava US$ 4 milhões. O orçamento oficial do ano anterior estabelecia despesas mensais de 10 milhões de cruzeiros (US$ 300 mil na época, cerca de R$ 580 mil hoje) só no IPES carioca. A projeção do novo ano previa o dobro das despesas. Nesse total não estava incluído o gasto com atividades encobertas e sigilosas. Os valores eram bem mais respeitáveis.
A CPI que investigou a ligação do IPES com o IBAD apurou que, nas eleições gerais de outubro de 1962, a ADP do complexo IPES/IBAD injetou algo entre 5 bilhões e 20 bilhões de cruzeiros (em termos atuais, uma fornida soma que varia de 260 milhões a 1 bilhão de reais) para financiar 250 candidatos. Foram eleitos 110. [O embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon, bem mais modesto, disse que o valor investido não superara US$ 5 milhões (cerca de 10 milhões de reais hoje). DREIFUSS, op. cit., p. 330.]
No Rio Grande do Sul, a aliança de centro-direita da ADP era integrada por PSD, UDN, PL, PDC e PRP. O vitorioso Ildo Meneghetti, um dos oito governadores apoiados pelo IPES/IBAD no país, enfatizou que a indústria e o comércio locais – “sob a égide do IPESUL” – garantiram o resultado das urnas. Dois dos deputados eleitos pelo IPESUL eram Peracchi Barcellos (PSD) e Euclides Triches (PDC), mais tarde nomeados governadores do Rio Grande na safra de eleições indiretas da ditadura.
A escolha dos agraciados com o apoio financeiro obedecia a uma regra rígida, quase um contrato de compra e venda. Quem se habilitava a integrar a lista de “democratas convictos e anticomunistas de primeira ordem” passava pelo crivo dos analistas do complexo IPES/IBAD. Mais importante do que a filiação partidária era a orientação das ideias. Cada candidato era compelido a assinar um “ato de compromisso ideológico”, pelo qual prometiam lealdade ao IBAD acima da fidelidade ao seu partido, comprometendo-se ainda a lutar contra o comunismo e a defender o investimento estrangeiro. E eram compulsoriamente alistados na ADP liderada por João Mendes [DREIFUSS, op. cit., p. 324].
Mas a mercadoria custava caro. O chefe do GAP (Grupo de Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores, avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava que cada deputado “custaria” cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 317 mil), mas percebeu que esta seria a conta de nomes da Paraíba e outros Estados menores. O preço aumentava no Ceará e ainda mais na Bahia. “Os candidatos de Rio e São Paulo eram muito mais caros”, explicou Mello Flores a Glycon de Paiva, ao avaliar a conta per capita dos deputados no balcão do IPES: 15 milhões de cruzeiros (cotação atual: R$ 792 mil). Paiva recomendava a escolha de “indivíduos de caráter, bons anticomunistas”, enquanto Mello Flores imaginava um pacote inicial de 50 deputados [Ibid., p. 328]. O orçamento de um candidato “apagado”, isto é, pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral, incluía despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas, fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle, gasolina, correspondência e pessoal de apoio… Tudo isso ao custo de uns 10 milhões de cruzeiros, o que não era pouca coisa. Dez milhões, que hoje valem R$ 528 mil, equivaliam então à renda diária de 20 mil trabalhadores de salário mínimo [Ibid., nota 243, p. 356].
Outras empresas ligadas ao IPES colaboravam com seus serviços, como no caso das passagens aéreas gratuitas liberadas pela Panair, Cruzeiro do Sul e Varig, que faziam a conspiração voar alto pelo país. Uma única empresa estrangeira, a Deltec, do americano David Beaty III, sócio do IPES, abriu uma “caixinha” de US$ 7 milhões de um fundo originário das ilhas Nassau. O IPES recebeu apoio financeiro de 297 corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas, suecas, alemãs. A Fundação Konrad Adenauer, órgão do Partido Democrata Cristão alemão, canalizava recursos pelo sólido complexo siderúrgico Mannesmann e pela gigante Mercedes Benz. O general Golbery encarregou-se pessoalmente do contato com o presidente da Mercedes.
A presença americana se faria sentir no momento dramático da troca de poder. Na noite de 2 de abril de 1964 em que o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República, quando Jango ainda estava em Porto Alegre aguardando a evolução dos acontecimentos, alguns parlamentares golpistas foram ao Planalto. O palácio estava na escuridão, causada por um corte de energia. Eles acompanhavam o ato que reconheceria Ranieri Mazzili, presidente da Câmara, como sucessor de Jango. Quando acenderam os fósforos naquele ambiente, o deputado baiano Luiz Viana Filho (UDN) viu ao seu lado Robert Bentley, o jovem secretário da Embaixada americana em Brasília [VIANA FILHO, Luiz. O governo Castello Branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 46].
Dois anos antes, os chefes supremos de Bentley já mostravam intimidade com o tema brasileiro em Washington. O presidente John Kennedy entrou no Salão Oval na segunda-feira, 30 de julho de 1962, e ligou pela primeira vez seu novo brinquedinho, instalado no fim de semana: o sistema secreto de gravação de voz da Casa Branca. A estréia prometia: era uma conversa cabeluda de Kennedy com o seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, pavimentando o caminho para o golpe militar que derrubaria João Goulart dois anos depois. Começava pelo gasto não contabilizado de US$ 8 milhões nas eleições de 1962, adubando secretamente candidatos apoiados pela CIA e simpáticos aos EUA. A conexão do mundo político com os militares golpistas era feita pelo discreto adido militar da embaixada, coronel Vernon Walters, que chegaria a vice-diretor da CIA no auge do Caso Watergate, que derrubou Nixon.
A transcrição das fitas mostra, numa frase de Gordon para Kennedy, que o alvo central da conspiração era o próprio Jango:
– Para expulsá-lo, se necessário – disse o embaixador, esclarecendo:
– O posto da CIA no Brasil deixará claro, discretamente, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, em absoluto, se ficar claro que o motivo da ação militar é…
–… Contra a esquerda – completou o presidente Kennedy, dando o sinal verde para o golpe que aconteceria vinte meses depois. [WEINER, TIM. Legado de Cinzas. Uma história da CIA. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 219].
Rezas e cânticos
Na véspera da eleição de 1962, a Promotion de Ivan Hasslocher, líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual) para propaganda direta. A revista Repórter Sindical também era operada pela entidade. O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente como o economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro. Era gratuita e, ainda assim, não tinha um único anúncio. No início de 1963, um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do Brasil e em O Estado de S.Paulo. Manifestos variados, todos “democráticos”, proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Tudo gratuito, tudo pela pátria, tudo pela democracia.
Um milhão de cópias da Cartilha para o Progresso, feita pelo IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista de grande circulação da Editora Bloch. Em janeiro de 1963, na Faculdade de Direito de São Paulo, 22 mil pessoas se reuniram durante uma semana para o I Congresso Brasileiro para Reformas de Base, uma resposta da elite econômica ao que se discutia no governo de Jango. Dali nasceram 80 propostas de diretrizes que redefiniam o país no plano político, social e econômico. Mais do que uma proposta para chegar ao poder, era um autêntico programa de governo organizado pelos grupos de estudo do IPES de Rio e São Paulo. Oficialmente promovido pelos jornais Correio da Manhã e Folha de S.Paulo, o congresso teve seus 23 documentos finais publicados pelo Jornal do Brasil.
Num país de elevado analfabetismo, os golpistas perceberam a importância do rádio e da nascente televisão. O IPES gastou 10 milhões de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade, com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre reforma agrária, custo de vida, democracia. Estavam escaladas neste time algumas personalidades gaúchas como o senador Mem de Sá, os deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o prefeito Loureiro da Silva e o arcebispo dom Vicente Scherer. Em 1962, o IBAD operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele formava a “Cadeia da Democracia”, sob o comando do senador João Calmon, dos Diários Associados, que tinha o cuidado de ir ao ar no mesmo horário das transmissões do líder trabalhista Leonel Brizola, que os derrotara um ano antes com a “Cadeia da Legalidade”.
O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi contratado pelo IPES para produzir filmes como Que é a democracia, Deixem o estudante estudar, Uma economia estrangulada, Criando homens livres. Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste exibido nas matinês do interior do país, onde se espalhavam três mil salas de cinema. As cópias ficavam sob guarda de Luiz Severiano Ribeiro, o maior distribuidor e proprietário de salas do Brasil. Quando a platéia não aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do “cinema ambulante” em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era um mutirão democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.
O IPES jogava seu charme também sobre as mulheres. Custeava, organizava e orientava politicamente as duas organizações femininas mais importantes do país: a Camde, Campanha da Mulher pela Democracia, no Rio de Janeiro, e a UCF, União Cívica Feminina, de São Paulo. O MAF, Movimento de Arregimentação Feminina, na capital paulista, tinha 6 mil filiadas em São Paulo e era presidido por Antonieta Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, dono de O Estado de S.Paulo e um dos principais patronos do IPES. Com um rosário nas mãos e um afiado discurso anticomunista na língua, as donas de casa foram à luta para mobilizar as esposas de militares, sindicalistas e funcionários públicos. Mais de 50 mil cartas atulharam o correio dos parlamentares no Congresso, em Brasília.
A primeira reunião da Camde no Rio realizou-se no auditório de O Globo, que garantia espaço no jornal e na rádio para a agitação das mulheres. E, apesar dos colares de pérolas, dos penteados elegantes e do ar de velhinhas recatadas, elas sabiam agitar. Em janeiro de 1964, ao saber de um iminente congresso da CUT da América Latina em Belo Horizonte, a Limde, Liga da Mulher Democrata, ameaçou invadir o aeroporto da Pampulha e deitar as militantes na pista para impedir a reunião subversiva. O encontro foi transferido para Brasília. Em fevereiro, quando Leonel Brizola passou por lá para defender as reformas, o auditório da Secretaria da Saúde na capital mineira foi invadido por um pelotão de mulheres, com o terço nas mãos, slogans contra o belzebu vermelho e orações para exorcizar o anticristo do PTB. Brizola teve que se calar, diante do tumulto e dos objetos voando pelo salão, num episódio conhecido como a “Noite das Cadeiradas”.
No comício da Central do Brasil no Rio de Janeiro, em 13 de março, duas semanas antes do golpe, Jango mirou nas mulheres: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças”, discursou, ao lado da mulher, Maria Tereza. O IPES traduziu calculadamente o ato como uma bofetada nas mulheres e em Nossa Senhora. Uma semana depois, 19 de março, a UCF paulista reagiu no dia de São José, santo protetor da família, com uma marcha na Praça da Sé com cerca de 500 mil pessoas, uma multidão cinco vezes maior do que o comício da Central. Eram puxadas pela reza fervorosa do padre americano Patrick Peyton, financiado pelo IPES, e bradavam sua graciosa palavra de ordem: “Vermelho bom, só batom”. O sucesso da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que originalmente deveria se chamar “Desagravo ao Santo Rosário”, inflamou o movimento. Marcaram outra, maior ainda, para o Rio de Janeiro em 2 de abril. Mas o general Olympio Mourão Filho sacou primeiro em Juiz de Fora, 48 horas antes da marcha do Rio. E o ato de protesto virou a “Marcha da Vitória”: quase um milhão de pessoas, lideradas pelo Camde e pelo IPES, tomaram a av. Rio Branco em transe cívico, pontuado por rezas e cânticos, para saudar a nova ordem vitoriosa e a queda de Jango.
“Infame líder”
Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a prática. O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, da Escola Superior de Guerra, de onde provinha o núcleo fardado do golpe. O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quartéis.
Sempre sob a liderança de Golbery, lá estavam nomes que, mais tarde, fariam parte do poder revolucionário, como ministros ou até presidentes. Orlando Geisel, Mário Andreazza e Walter Pires formulavam planos com Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Um grupo que Dreifuss nomeia como “Extremistas de Direita” tem como destaque o coronel (depois brigadeiro) João Paulo Moreira Burnier, veterano da fracassada revolta de Aragarças no Governo JK. São definidos como fanáticos anticomunistas e a favor da modernização industrial conservadora. Curiosamente, o grupo era mais ligado ao jornalista Júlio de Mesquita Neto, expoente da “linha dura” paulista que pregava uma forte mensagem anticorrupção e contra a esquerda. Com Mesquita estavam seu irmão Ruy e os deputados Roberto Abreu Sodré e Paulo Egydio Martins, depois governadores indicados pelos quartéis em São Paulo. Foi Burnier quem montou o plano de proteção ao Palácio Guanabara do governador Carlos Lacerda, no dia do golpe, onde se refugiaram figuras como o homem de TV Flávio Cavalcanti e o jornalista Hélio Fernandes, diretor do jornal lacerdista Tribuna da Imprensa.
No início de 1962 oficiais das Forças Armadas, falando em nome de um trio histórico de conspiradores – o marechal Denys, o almirante Heck e o brigadeiro Grun Moss –, foram a São Paulo para um encontro com Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um documento sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos. Animado com a conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro ministério revolucionário, incluindo entre eles Mem de Sá, Roberto Campos, Dario de Almeida Magalhães e Milton Campos. Todos os quatro chegaram lá.
Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembléias e cassar mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois faria seu jornal engolir com o AI-5, na forma de versos e receita de bolo [STACCHINI, José. Março 64: a mobilização da audácia. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965]. “Até ali [o AI-5], nós vínhamos divergindo em caso e número, mas não em gênero, porque sabíamos que o processo tinha que ser aquele, achávamos que devia ser aquele”, reconheceria anos depois Ruy Mesquita, irmão de Júlio e também diretor de O Estado de S. Paulo [VENTURA, Zuenir, 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988].
A velocidade da conspiração dava maior desenvoltura e ousadia aos golpistas. Em abril de 1963 o comando do complexo IPES/IBAD enviou um convite aberto para uma reunião pública no estádio do Pacaembu. Cerca de 400 figuras importantes do movimento anti-Jango estavam lá. Uma outra reunião, mais reduzida, aconteceu horas depois no apartamento de Júlio Mesquita Filho, encarregado de coordenar o apoio aos ativistas através da mídia. No final de junho, o encontro no estádio evoluiu para um comício, conhecido como “Convenção do Pacaembu”. Levaram sindicalistas e estudantes de onze Estados, com uma platéia de quase 4 mil pessoas, todos conspiradores. Entre os líderes maiores, lá estavam os governadores Carlos Lacerda (Rio) e Adhemar de Barros (SP). A festa acabou produzindo um efeito decisivo sobre os militares, que se viram abertamente apoiados pelo que imaginavam ser um bloco de trabalhadores, estudantes e classe média. Era o povo, enfim, que lhes faltara no fiasco golpista de 1961.
No Rio Grande do Sul, quartel-general da maior concentração de tropas do Exército brasileiro e foco principal da resistência de Brizola na “Campanha da Legalidade”, dois terços da oficialidade já estavam engajados na rebelião. O deputado Peracchi Barcelos (PSD), coronel da Brigada Militar eleito pela lista do IPESUL, tratava de sublevar a força pública do Estado. O general da reserva Armando Cattani organizava grandes fazendeiros no interior em unidades paramilitares que seriam acionadas na hora precisa. Tudo sob as bênçãos do governador Ildo Meneghetti, membro ilustre da lista vitoriosa do complexo IPES/IBAD.
Na dura expressão de René Dreifuss, “o IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública” pela relação especial com os principais veículos da mídia nacional.
Um de seus alvos centrais era Assis Chateaubriand – o dono dos Diários Associados, então a maior cadeia de imprensa do país, era mais poderoso que o Roberto Marinho do Sistema Globo que floresceu depois do golpe. No início da década de 50, Chateaubriand foi citado pelo The New York Times como o Cidadão Kane brasileiro, versão tupiniquim do magnata americano William Randolph Hearst, que inspirou o filme clássico de Orson Welles e carimbou na primeira metade do século 20 a chamada “imprensa marrom”, formada por veículos sensacionalistas e de baixo padrão ético. O americano não era páreo para o brasileiro. Diante dos 28 jornais e 18 revistas de Hearst, Chateubriand ostentava um rosário midiático de 34 jornais, 36 emissoras de rádio e 18 de TV integrantes da rede Tupi, a revista O Cruzeiro (a maior tiragem do país, 700 mil exemplares no auge dos anos 50, a mesma do lançamento de Veja duas décadas depois, em 1968), uma revista mensal (A Cigarra), uma agência de notícias e várias revistas infantis.
[Veja penou até se consolidar. A tiragem caiu para 500 mil na segunda semana, 300 mil na terceira, 150 mil na quarta, 100 mil na quinta. Durante 20 semanas, a revista não vendeu mais que 16 mil exemplares. Em 1972, a redação de São Paulo, sede da revista, tinha definhado de 46 para 10 repórteres. Apesar da censura prévia, Veja encontrou o tom para revelar os bastidores do regime militar. Acabou o ano superando a marca dos 100 mil exemplares, uma escalada de vendas que nunca mais parou. ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009. p. 39-51.]
Esperto e inimigo mortal de comunistas, Chateaubriand cravou seu diretor-geral, Edmundo Monteiro, num dos postos de comando do IPES carioca. Outro prócer da mídia, Octávio Frias, dono da Folha de S.Paulo, ingressou no IPES paulista. O empresário Herbert Levy, que mantinha os filhos operando dentro da conspiração, lançou o jornal Notícias Populares para conquistar o público de baixa renda. A coluna política “Seção Livre”, assinada por Pedro Dantas (pseudônimo de Prudente de Morais Neto), era publicada em O Estado de S.Paulo seguindo a cartilha ideológica do IPES. A escritora Nélida Piñon, secretária do IPES do Rio, ajudava também nos esforços de propaganda contra o governo.
A derrocada de Jango explodiu, com euforia, nos editoriais da grande imprensa:
** “Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o governador do Estado e os chefes militares. O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia, foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade”, comemorou o Estado de Minas.
** “Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade… A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas… Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, na desordem social e na corrupção generalizada”, atacou o Jornal do Brasil.
** “Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam se unir todos os patriotas [...] para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para os rumos contrários à sua vocação e tradições… Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegem de seus inimigos”, agradeceu O Globo.
** “Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comunos-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr. João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu”, tripudiou a Tribuna da Imprensa.
Sem autocrítica
O apoio da mídia a 1964 foi quase unânime no país, até por suas ligações ideológicas e operacionais com os mentores do complexo IPES/IBAD. Com exceção da Última Hora de Samuel Wainer, fiel até o fim a Jango e ao PTB que financiou seu jornal, todos os grandes veículos foram ostensivamente partidários do golpe, antes e depois. Pelo menos até a ruptura violenta do AI-5, que transformou velhos companheiros da conspiração em vítimas da truculência da ditadura.
Em alguns casos, mais do que apoio da mídia, houve adesão ao novo regime, chegando ao extremo da colaboração. Essa tese explosiva, que remete ao abjeto colaboracionismo do governo títere de Vichy com as tropas de ocupação de Hitler na França, é levantada pela pesquisadora Beatriz Kushnir, autora de um trabalho inquietante, pouco comentado na mídia, publicado pela Boitempo Editorial em 2004: Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Trabalhando em cima do arquivo do Departamento de Censura e Diversões Públicas do regime e do material da Academia Nacional de Polícia, que treinava os censores, Kushnir avançou uma grave conclusão: “A maioria da grande imprensa colaborou com o regime. Quando digo “colaborou”, quero dizer que foi mais que um pacto. Eles se engajaram mesmo”. [KUSHNIR, Beatriz. A estreita união entre imprensa e ditadura. Portal Vermelho, entrevista a André Cintra, em 22 abr. 2009.].
Ela explica melhor o título de seu livro: “Os jornalistas e donos de jornal, ao apoiar os governos militares naquele momento, optaram por estar ao lado do poder, se tornaram tanto agentes como vítimas dessa autocensura. Permanecer no palco das decisões era mais importante que a busca e a publicação da verdade. Por isso, esses jornalistas colaboracionistas são aqui vistos como cães de guarda” [KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 48].
Dos anos 50 até a Constituição de 1988, ela apurou, o Brasil teve 220 censores, com a missão de percorrer todo o país para checar jornais, revistas, as artes e a propaganda. Havia jornais, diz Kushnir, que declaradamente optaram por uma posição cínica, defendendo nos anos 70 uma “censura inteligente”, feita por profissionais política e intelectualmente mais bem preparados. Era o tempo da censura transmitida por telefones e bilhetinhos, apócrifos, já que nenhuma lei autorizava a violência. A origem dos recados, o Serviço de Informação do Gabinete (Sigab) do Ministro da Justiça, bastava para impor a ordem. Sem a autocensura, a alternativa era a censura prévia.
Assustados com a zoeira anticomunista, setores da sociedade cobravam do governo mais rigor no controle da mídia. Em 1972, um certo “Movimento de Recuperação da Juventude Brasileira” enviou ao Ministério da Educação um apelo para endurecer a censura. A divisão de segurança do MEC repassou a proposta à Polícia Federal. Para demonstrar sua tese da colaboração, a pesquisadora usa o exemplo da Folha de S.Paulo. O jornal de 1962 que tinha o editor Octávio Frias de Oliveira como membro militante do IPES e da conspiração é o mesmo jornal de 2009 que tem o editor Octávio Frias Filho pilotando um editorial onde a ditadura de 64 ganhava o honroso neologismo de “ditabranda”.
O objeto de estudo de Kushnir é um diário do Grupo Frias, a Folha da Tarde, que mudou de lado dramaticamente com a edição do AI-5. Até 1968 era um jornal de esquerda, mais inquieto, que concorria diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. No comando da redação estava um jornalista egresso da Última Hora janguista, Jorge Miranda Jordão, que tinha sob seu comando alguns jornalistas ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo da luta armada liderada por Carlos Marighella. O advento do AI-5 deixou o ar irrespirável, como advertia a previsão do JB. Houve uma limpeza na redação e, a partir de julho de 1969, a Folha da Tarde converteu-se num diário que o jornalista Cláudio Abramo resumiu numa palavra: “Sórdido”. Os antigos militantes de esquerda foram substituídos por policiais que escreviam, mantendo até o duplo emprego entre redação e repressão.
Frias botou no lugar de Jordão um jornalista especializado em cobertura policial, Antônio Aggio Jr. “Ele veio de Santos e trouxe dois companheiros, um deles com forte influência nas forças de repressão”, diz Kushnir. Um redator da editoria de “Mundo” cumpria dupla jornada: trabalhava à tarde no jornal e, de manhã, no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), comandado pelo delegado Sérgio Fleury, o mais ilustre nome da máquina de tortura brasileira. “Muitos jornalistas andavam armados na redação. O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca”, acusa Kushnir. (Ela está sendo processada na Justiça por estas denúncias, que Aggio rebate.)
Por tudo isso, a Folha da Tarde paulista era conhecida como “o jornal de maior tiragem” – uma piada lúgubre sobre a taxa de “tiras” (policiais) que infestavam sua redação, também conhecida como “delegacia”. Com acesso privilegiado ao poder, o jornal sabia antes dos outros sobre o que acontecia nos porões da ditadura. Kushnir lembra que os militantes da esquerda presos pela ditadura morriam antes nas páginas do jornal: em 17 de abril de 1971, a Folha da Tarde anunciou em primeira mão o fim do matador do industrial dinamarquês Henning Albert Boilesen, 55 anos, naturalizado brasileiro e alto executivo do Grupo Ultra. “Morto o assassino do industrial Boilesen”, dizia a manchete, horas antes do metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas, codinome Roque, aparecer morto nas celas do DOI-CODI do II Exército. Como a maioria da grande imprensa, diz Kushnir, o jornal de Frias engolia a versão policial de que Roque morrera vítima de uma troca de tiros na rua.
Na ótica da guerrilha, Boilesen fora “justiçado”, como financiador do aparato repressivo reunido em torno da OBAN (Operação Bandeirante) que integrava militares e o DOPS no combate à guerrilha. Ele foi morto em 15 de abril em seu Ford Galaxie, numa rua de São Paulo, por guerrilheiros de dois grupos de esquerda – a Aliança Libertadora Nacional (ALN) de Carlos Marighella e o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). Era um ilustre membro do IPES que construiu o golpe, nos dez anos anteriores. Além disso, era alto dirigente do Ultra, um dos maiores grupos petroquímicos do país (faturamento em 2006 de R$ 5 bilhões e lucro de R$ 230 milhões), com destaque para a Ultragas, líder na distribuição de gás de cozinha e presidida por Boilesen. No início da década de 60, Pery, o filho do fundador do Grupo Ultra, Ernesto Igel, aproximou-se de duas figuras fundamentais para seus negócios petroquímicos: Hélio Beltrão e Ernesto Geisel, nomes influentes do IPES e da conspiração.
“Pery Igel era intuitivo, arrojado”, lembrava o empresário Olavo Monteiro de Carvalho, presidente do grupo Monteiro Aranha, que testemunhou seu entusiasmo pela nova ordem militar. Igel deu todo o gás ao golpe. Uma de suas empresas, a Supergel, abastecia os órgãos da repressão com marmitas de comida congelada, e a Ultragas de Boilesen, suspeita-se, teria emprestado caminhões de sua frota a órgãos de segurança [CASTANHEIRA, Joaquim. A química de Paulo Cunha. Istoé Dinheiro, São Paulo, 8 nov. 2006].
Por pouco Igel não teve a mesma sorte de seu executivo Boilesen, que segundo a lenda tinha como distração visitar os porões da OBAN para ver os torturadores em ação. Em abril de 2009, Carlos Eugênio Paz, o chefe do GTA (Grupo Tático Armado) da ALN, a temida ala militar da organização de Marighella, confirmou: “A ALN tinha conhecimento de vários financiadores da OBAN. Entre eles estavam o sr. Frias, presidente do Grupo Folha, o presidente da Ultragas, Henning Albert Boilesen, o presidente do Grupo Ultra, Pery Igel, o presidente do Bradesco, Amador Aguiar, e o presidente da FIESP, Theobaldo de Nigris, que cedia a sede da Federação das Indústrias de São Paulo para reuniões de arrecadação de fundos. Havia provas cabais e contundentes”. [PAZ, Carlos Eugênio. Entrevista a Rodrigo Vianna. O Escrevinhador. 17 abr. 2009.]
Era comum, também, a versão sobre a colaboração material que o Grupo Folha dava à repressão naqueles tempos irrespiráveis. As peruas Chevrolet C-14, da frota que transportava jornais para as bancas, muitas vezes foram usadas para levar ou trazer gente torturada na OBAN. Paz, o chefe do GTA, reforça: “A ALN queimou vários carros da Folha como represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão e ao uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, atuando na guerra, o Grupo Folha era passível de sofrer as sanções e as represálias da guerra. O Grupo Folha apoiou o golpe de estado, financiou, participou diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso” [Ibid. Acesso em: 7 abr. 2009].
Hostilidade previsível
Em 18 de abril de 2009, Beatriz Kushnir lembrava alguns desses detalhes constrangedores no Memorial da Resistência em São Paulo, num auditório com 150 pessoas ali reunidas para debater o papel da mídia na democracia e na ditadura. Dez presentes da platéia pediram a palavra, três reafirmaram ter sido conduzidos aos centros de tortura em peruas do Grupo Folha.
Rui Veiga, jornalista e ex-preso político, fez uma acusação ainda mais grave: “Um repórter da Folha acompanhou meu transporte da OBAN até o DOPS e me aconselhou a não esconder nada, a colaborar com o regime”, denunciou.
No Rio Grande do Sul, nunca se soube de tal envolvimento material. Mas sobraram conivência e complacência da imprensa gaúcha com o golpe, antes e depois de 1964. A razão é simples. O alinhamento dos jornais com a conspiração e com o regime militar era natural. O Diário de Notícias, de Chateaubriand, tinha orientação do dono para bater no governo e apoiar a oposição empresarial e militar. Zero Hora já nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um mês e quatro dias depois do levantamento militar do general Olympio Mourão. Herdou as máquinas e a antiga sede na rua Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre, do jornal Última Hora, mas livrou-se rapidamente do logotipo, da cara e da comprometedora fidelidade ideológica de seu antecessor nas bancas e de seu dono no expediente, Samuel Wainer.
Amigo pessoal de Getúlio Vargas e ex-repórter do conspirador Chateaubriand, Wainer arrumou dinheiro do Banco do Brasil, na volta do getulismo ao poder, e fundou em 1955 a edição da Última Hora no Rio de Janeiro. Tinha um nobre propósito, segundo seu fundador: “Romper com a formação oligárquica da imprensa brasileira e dar início a um tipo de imprensa popular e independente”. O jornal conquistou novos leitores na área trabalhista e sindical e cresceu. Em 1961, quando Jango chegava ao poder e o IPES nascia para derrubá-lo, a UH de Wainer era uma vibrante, crescente e ágil rede nacional diária que, além de Rio e São Paulo, já publicava edições simultâneas em outros nove centros importantes do país – Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba, Campinas, Santos, Bauru, a emergente região sindical do ABC paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano) e, finalmente, Porto Alegre. Na capital do Rio Grande do Sul, berço de Getúlio, Jango e Brizola e centro da resistência mais forte ao golpe, circulava a edição mais jacobina da rede de jornais de Samuel Wainer [BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal. Desafios de um tablóide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre: JÁ, 1999. p. 156].
Era natural, portanto, que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem militar. A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante militar até o dia 5 de abril. Resfolegou numa impossível neutralidade por mais três semanas e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de 1964. O diretor da edição gaúcha, Ary de Carvalho, ainda procurou manter a equipe, a marca e a estrutura do velho jornal. Viajou ao Rio, para uma conversa de negócios com Wainer, então exilado na Embaixada do México. Carvalho fez a proposta, e Wainer topou vender as máquinas de escrever, as oito máquinas fotográficas, as quatro lambretas, os dois carros e o arquivo de fotos – mas não aceitou vender o título do jornal [Morre o jornalista e empresário Ary de Carvalho. O Dia, Rio de Janeiro, 4 jul. 2003].
Wainer mandou fechar o jornal. Com outros três empresários, Carvalho comprou máquinas e equipamentos da redação, segurou alguns membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964. Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – “parecida, mas diferente da Última Hora” [BARROS, op. cit., p. 158]. Bendatti datilografou a palavra Zero Hora, ampliou os tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de 1964. A simpatia dos conspiradores foi ainda maior.
Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma no projeto golpista do IPES. Nada mais natural, assim, do que ajudar o velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos vitoriosos de abril de 64. Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e cresceu.
Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício Sirotski, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior. Juntos compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão em off set que tornou a Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a novidade (o primeiro tinha sido a Folha de S.Paulo de Frias).
O esforço fez o jornal cambalear financeiramente, e, em abril de 1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio e retirou-se para o Rio de Janeiro. Sirotski, agora o único dono de Zero Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a Excelsior pela Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais cresceria sob a ditadura. No vácuo deste sucesso nasceu, cresceu e apareceu a RBS, a Rede Brasil-Sul de Sirotski, hoje o grupo de mídia mais poderoso do sul do país, nascido dos escombros da Última Hora esmagada pelos tanques de 64.
Até aparecer a RBS, a empresa jornalística mais influente e rica do Rio Grande do Sul era a Caldas Júnior, que editava o jornal mais importante do Estado, o Correio do Povo, operava a rádio mais ouvida, a Guaíba, e mantinha um vespertino de larga penetração, a Folha da Tarde. Atravessou sem sobressaltos a turbulência de 1964 porque era uma empresa conservadora, mantida sob o rígido controle de seu dono, Breno Caldas. Tinha apenas 25 anos quando assumiu o jornal, em 1935. O pai, fundador do Correio do Povo meio século antes, morrera prematuramente aos 45 anos, em 1913, mergulhando a empresa numa crise financeira que durou até a chegada de Breno Caldas.
Breno Caldas cultivava uma previsível hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola – que na crise de 1961 requisitou a sua rádio Guaíba para montar em torno dela a “Rede da Legalidade” que brecou o golpe militar e garantiu a posse de Jango.
Nota discreta
Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca José Luiz Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a Caldas Júnior no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de artigos contra Leonel Brizola, que já não tinha a simpatia da casa desde a Campanha da Legalidade do ano anterior [DREIFUSS, op.cit., p. 233].
A animosidade cresceu no governo Jango. Brizola pegou gosto pelo microfone e batia regularmente em Breno Caldas às sextas-feiras, no seu programa noturno na rádio Farroupilha, que curiosamente fazia parte da rede dos Diários Associados do golpista Chateaubriand. O ex-governador adotava um tom coloquial e direto ao falar na rádio: “Dr. Breno, eu sei que o senhor está me ouvindo aí no seu iate ancorado no Guaíba…”. A chicotada vinha em seguida: “O Correio do Povo, que já foi jornal do povo, hoje não é. Agora é um órgão da oligarquia, dos monopólios, dos trustes internacionais…”, batia Brizola [PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas. Meio século de Correio do Povo. Glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 72].
A resposta vinha na primeira página da Folha da Tarde, nos artigos assinados por seu diretor, Arlindo Pasqualini, o homem do IPES dentro da Caldas Júnior. Como bom fazendeiro e criador de cavalos, Breno tinha afinidades campeiras com Jango, a quem chamava por “tu”, expressão de intimidade entre gaúchos. (Para manter a distância, Breno sempre tratava Brizola pelo cerimonioso “doutor”). Quando o golpe aconteceu, acabaram as cerimônias.
No editorial da primeira edição do jornal, no longínquo 1° de outubro de 1895, Caldas Jr. tinha definido um lema e uma linha para o jornal que se tornaria centenário: “Independente, nobre e forte – procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna.”
Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua histórica divisa, aderiu à facção vitoriosa e adotou uma postura subalterna à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para explicar por que os revolucionários de 31 de março estavam certos: “Aquele era o único caminho para salvar o Brasil”, dizia o jornal que se anunciava independente, nobre e forte, fazendo coro com a grande imprensa golpista do centro do país [GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995, p. 411].
Falando, Breno Caldas tentava matizar o que era mais explícito nos editoriais. Em 1987, dois anos antes de morrer, em entrevista ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado, ele reconhecia: “A Revolução de 1964, de certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos com a nossa simpatia. O pessoal que foi ao poder em 1964… não é que fosse ligado a nós – não tínhamos ligações políticas com ninguém –, mas eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho. Quando houve a tal conspiração do Castello Branco, eu não sabia de nada oficialmente. Até que o general Adalberto Pereira dos Santos, que comandou o movimento por aqui, fez um contato comigo, me disse que a situação era crítica, que iria acontecer alguma coisa. “Fique atento a uma manifestação do general Castello Branco”, me disse ele” [PINHEIRO MACHADO, op.cit., p.78].
A intimidade de Breno Caldas com o regime militar tinha uma explicação cavalar. Dono do Haras do Arado, um dos mais qualificados do Estado, nas redondezas de Porto Alegre, Breno ganhou fama como renomado criador de cavalos puro-sangue inglês de corrida, entre eles Estensoro, o maior campeão da história do turfe gaúcho. O general Costa e Silva, primeiro ministro do Exército da ditadura e sucessor de Castello Branco na presidência, adorava corridas de cavalo – e sempre conversava com Breno sobre o assunto. Quando o filho de Breno, Francisco Antônio, prestou o serviço militar, foi requisitado por Costa e Silva, então comandante da III Região Militar de Porto Alegre, para ser seu motorista particular. “A idéia do Costa e Silva não era se aproximar do Correio do Povo, mas sim ter por perto alguém ligado ao turfe!…”, desconfiava Breno, orgulhoso porque o filho era um soldado raso que almoçava na mesa generosa do poderoso general e de sua mulher, dona Yolanda Costa e Silva. O chefe do Estado-Maior do III Exército, na época, era outro amante de cavalos: o general Emílio Garrastazú Médici, futuro comandante da tropa no sul e sucessor de Costa e Silva no Planalto.
Estas eqüinas relações de amizade não ajudaram Breno Caldas a evitar os arreios da censura. Em 1972, quatro anos após a edição do AI-5, O Estado de S.Paulo que ajudara a montar o golpe vivia sob forte censura, que o obrigava a cobrir os espaços em branco com versos de Camões. O regime não permitia a exposição da censura e disparava cortes por telefones ou bilhetinhos, sem assinatura, ordens atribuídas ao ministro Alfredo Buzaid, da Justiça. Em 19 de setembro de 1972, a redação do Estadão recebeu outro papelucho proibindo “a publicação de notícias, comentários, entrevistas ou críticas de qualquer natureza sobre a abertura política ou democratização, ou assuntos correlatos, anistia a cassados ou revisão parcial dos seus processos, críticas ou comentários ou editorais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira ou problema sucessório e suas implicações”. Apenas isso, nada além disso.
O diretor do Estadão, Ruy Mesquita, perdeu a paciência com os velhos companheiros de conspiração de 1964 e disparou um telegrama violento para Buzaid:
“Sr. Ministro, ao tomar conhecimento dessas ordens emanadas de V.Excia., o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha pelo Brasil, degradado à condição de uma república de Uganda qualquer por um governo que acaba, de forma incrível, de decretar o ostracismo dos próprios companheiros de Revolução, que ocuparam ontem os cargos em que se encontram hoje, e não cogitam cinco minutos do julgamento da História. O senhor, Ministro, deixará de sê-lo um dia. Todos os que estão hoje, no poder, dele baixarão um dia, e, então, Sr. Ministro, como aconteceu na Alemanha, na Itália ou na Rússia, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período, em que abandonaram os rumos traçados pelo seu maior líder, marechal Castello Branco”.
O petardo de Mesquita foi lido da tribuna do Senado pelo líder da oposição, o senador Franco Montoro, do MDB paulista. Foi contestado pelo líder governista, o senador Filinto Müller, ex-chefe de polícia da ditadura do Estado Novo getulista: “Não há nenhum ato ou documento do Ministério da Justiça disciplinando as matérias publicáveis nos jornais do país”, mentiu o líder da ARENA, alegando que notícias de censura eram “campanha organizada para perturbar a vida pública brasileira”. O Correio do Povo queria publicar esta notícia, com a denúncia da oposição e a mentira do governo, numa nota discreta na página 8, em duas colunas enxutas na edição festiva de 20 de setembro, data de mais um aniversário da Revolução Farroupilha.
A Revolução de 64 sacou primeira.
Cautela exagerada
Na véspera do feriado dos farrapos, na tarde de terça-feira, 19 de setembro, adentrou a redação do Correio do Povo um jovem de cabelos compridos e encaracolados, grossas costeletas emoldurando um par de óculos grande e de armação pesada, que contrastava com o sorriso simpático. Poderia ser um freqüentador retardatário do festival hippie de Woodstock, não fosse o traje de sempre, terno escuro e gravata, e a mensagem habitual da censura. Roque Gilberto Chedid desviou-se ao final do curso de Direito para a rotina torta da Delegacia de Censura da Polícia Federal no sul. Ele só se materializava pessoalmente em graves ocasiões. Preferia sempre se manifestar pelo telefone, mais discreto e imperceptível. Sua voz, educada e um tanto constrangida, atingia a Zero Hora pelo ouvido sensível de Lauro Schirmer, diretor de redação entre 1970 e 1990, a quem cabia ouvir as ordens inoportunas e castradoras da ditadura.
O jornalista Elmar Bones da Costa, gaúcho de Santana do Livramento, lembra bem de Chedid. De volta a Porto Alegre em 1972 após uma passagem por Veja em São Paulo, ele acabava de assumir a chefia de redação da Folha da Manhã, o jornal mais novo e rebelde da pacata Caldas Júnior. O ex-motorista de Costa e Silva, Francisco Antônio, filho de Breno, tentava uma última cartada para salvar o jornal, que agonizava com uma rala redação de duas dezenas de jornalistas e uma tiragem minguada de sete mil jornais. Junto com Elmar vinha da capital paulista um respeitado repórter da revista Realidade, José Antônio Severo, gaúcho de Caçapava do Sul, que assumiria a direção da Folha da Manhã em sua fase mais brilhante. Conta Elmar Bones [depoimento ao autor em 3 set. 2009]:
Havíamos decidido também não aceitar censura por telefone. Nos primeiros meses não houve problema, não tivemos notícia do censor. No final de 1972, talvez por causa do embate pela sucessão do general Médici, a censura recrudesceu. Um dia fui comunicado pela direção que um agente da Polícia Federal viria à redação com orientação sobre assuntos que não deveriam ser noticiados.
Apresentou-se, então, um jovem estudante de Direito, simpático, compreensivo, um tanto sem jeito. Chamava-se Roque Chedid. Disse que cumpria ordens e revelou total inexperiência no assunto. Expliquei que, por princípio profissional, eu era contra qualquer censura, mas que era empregado e a orientação da empresa era acatar as determinações. Falei da nossa orientação de não aceitar censura por telefone, até para evitar trotes, e ele concordou. Ele disse que não iria interferir na redação, nem ler matérias, nem nada. Viria apenas quando houvesse algum assunto proibido.
E passou a comparecer periodicamente. Uma ou duas vezes por semana ele aparecia. Não trazia ordens escritas, nem determinações detalhadas. Puxava um papelzinho do bolso e lia o que estava anotado, geralmente apenas o tema a ser suprimido. Por exemplo: “Protestos e manifestações de rua no Rio e em São Paulo”. “Movimento de guerrilha no Araguaia”.
Muitas vezes, era ele que nos trazia a notícia, uma vez que a censura exercida na origem junto às agências de notícias que nos abasteciam com o noticiário nacional já suprimia os tais assuntos proibidos. Ele também não sabia direito do que se tratava. Lia o que estava anotado no papel.
Um dia, ele apareceu para proibir qualquer notícia sobre o incidente daquela manhã no Rio de Janeiro. Ninguém sabia do que se tratava. Chedid contou que eram os protestos pela presença na cidade do secretário de Estado de Nixon, William Rogers. Chedid nem sabia ao certo quem era. “É a visita do Rogers, Rogers…” Não conseguia lembrar do primeiro nome do visitante. Alguém da redação ajudou: “Ah, o Roy Rogers?”. Ele agradeceu: “É, isso mesmo, o Roy Rogers”, respondeu, sem atentar para a diferença entre o secretário americano e o velho herói dos filmes de faroeste. Assim era a nossa censura.
Como a minha mesa ficava no fundo, ele tinha que atravessar toda a redação e muitas vezes, quando o pessoal estava de bom humor, era saudado com uma salva de palmas quando se retirava. Ele saía ruborizado, constrangido.
De repente, assim como veio, Roque Chedid desapareceu. Nunca mais o vi. Há uns dois anos li uma notícia na Zero Hora sobre sua aposentadoria como desembargador ou algo assim. A nota de poucas linhas não mencionava a sua experiência como censor.
Naquela terça-feira de setembro de 1972, a grave missão de Chedid exigia sua presença na redação do Correio do Povo. Exasperado como Ruy Mesquita, Breno Caldas reagiu à proibição para publicar o telegrama do diretor do Estadão. Ele engrossou a voz e pediu a ordem de censura por escrito. Chedid insistiu com o recado verbal, mas não adiantou. Breno saiu do jornal à noite, deixando uma determinação clara ao chefe de redação, Adail Borges Fortes:
– Se não vier a ordem escrita, vamos publicar!
O impensável iria acontecer. O provecto e conservador Correio do Povo batendo de frente com o regime militar. Chedid alertou o comando gaúcho da Polícia Federal, que repassou a notícia espantosa a Brasília. E o governo do general Médici, que tinha o gaúcho Carlos Fehlberg como seu secretário de imprensa, deu a ordem final:
– Apreendam!
A tropa de choque do Exército cercou o jornal, na rua Caldas Júnior, esperando o jornal sair da boca das rotativas, a partir das 4h da madrugada. O comandante da operação queria que a edição apreendida fosse transportada nos caminhões do próprio jornal até a sede da Polícia Federal, na avenida Paraná. Breno Caldas vetou a proposta indigna, e os militares tiveram que requisitar caçambas que trabalhavam no cais do porto, a três quadras de distância, para cumprir a missão da censura. Para não perder a viagem, os militares levaram, junto com o Correio do Povo, a edição da quarta-feira, 20 de setembro, da Folha da Manhã de Severo e Elmar, que também publicava o telegrama maldito de Ruy Mesquita. A rara trombada com o regime e a brava reação de Breno Caldas é uma exceção que confirma a regra de plácida convivência da imprensa gaúcha com a censura e a conseqüente autocensura, que nivelava tudo por baixo.
Seis anos depois já se falava em abertura, em anistia, e não havia mais censura prévia – mas o fantasma da autocensura ainda sobrevoava gabinetes ilustres da imprensa gaúcha em 1978. Uma norma não escrita da mídia do Rio Grande diz que, onde há gaúcho, tudo fica mais importante e prioritário. Um terremoto no Cazaquistão ganha a primeira página, por exemplo, se existe gaúcho entre as vítimas.
Este dogma foi atropelado impiedosamente no caso do sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lílian Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca, em novembro de 1978 em Porto Alegre. Era uma incursão binacional do Brasil e Uruguai no âmbito da Operação Condor, o “Mercosul do Terror” engendrado pelas ditaduras que infestavam o Cone Sul na década de 70. O jurista francês Jean Louis Weil passou uma semana na capital gaúcha investigando o caso e, pouco antes do deixar o país, deu uma contundente entrevista coletiva no Rio dando nomes aos bois – os militares uruguaios e os policiais brasileiros envolvidos no sequestro. O delegado gaúcho Pedro Seelig, apontado por Weil, era a mais reluzente estrela da repressão no sul. Merecia, portanto, todas as manchetes que sua condição de filho da terra lhe garantia. O que aconteceu acabou sendo uma página vergonhosa de submissão da imprensa gaúcha ao aparato repressivo da ditadura, um caso explícito de autocensura que eu retrato no livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios [CUNHA, op. cit., p. 143-152].
No aeroporto do Galeão, Jean Louis Weil falou à imprensa na segunda-feira, 11 de dezembro. O francês identificou os autores do sequestro nos dois lados da fronteira. A sigla de lá que ninguém ainda conhecia aqui era o OCOA, Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas. A de cá era o velho DOPS de guerra.
Weil denunciou o nome do militar uruguaio a quem estava subordinado o OCOA, o general Amaury Prantl. E apontou o chefe brasileiro do sequestro: o notório delegado Pedro Seelig, um gaúcho famoso o bastante para garantir qualquer manchete na imprensa local.
No dia seguinte, terça-feira, 12 de dezembro, os jornais da província reagiram com exagerada cautela à acusação contra o temido Seelig. Inexplicavelmente suprimiram do texto da matéria o nome do delegado gaúcho denunciado pelo jurista francês. Precavidos, os jornais de Porto Alegre se eximiram de responsabilidade, identificando a Agência Jornal do Brasil (AJB) como a fonte da notícia em que os nomes pareciam mais constrangedores do que os fatos.
Lembrar e contar
Na Caldas Júnior, nenhum de seus três jornais publicou a grave acusação de Weil. O principal jornal do trio, o Correio do Povo, publicou uma nota envergonhada no meio do noticiário de polícia, na página 5, com uma manchete que escondia mais do que revelava: “Advogado francês denunciou as autoridades responsáveis”. Teve o cuidado de não dar no texto nenhum nome brasileiro. Disse que o sequestro tinha sido realizado por um comando do OCOA uruguaio, “comandado pelo general Amaury Prantl, com a participação de policiais brasileiros do DOPS de Porto Alegre”. O mesmo embuste foi cometido pelos outros dois jornais da casa, a Folha da Manhã e a Folha da Tarde. Só 48 horas depois, na quarta-feira, 13, o vespertino atreveu-se a escrever o nome do delegado, em uma notícia sob outra manchete camuflada na página interna: “Sequestro. Advogado faz novas acusações contra os integrantes da polícia gaúcha”.
No texto acovardado da Folha da Tarde, o nome de Seelig só aparece no sexto parágrafo. Ainda assim dedica quatro linhas à acusação e quinze à defesa do delegado, em que ele mesmo desdenha da denúncia. O jornal Zero Hora teve um tropeço ainda mais visível na edição de terça-feira, 12. Estampou sua falta de coragem na primeira página, com uma manchete igualmente medrosa: “Advogado francês acusa general uruguaio pelo sequestro”. O surdo e cego editor do jornal não ouviu nem leu o nome de Seelig na denúncia.
O tal general “teria contado com o auxílio de policiais brasileiros”, desinformava o vago subtítulo do jornal. Lá dentro, em matéria secundária da página central, Zero Hora continuava escondendo a informação essencial sobre o nome do primeiro agente brasileiro denunciado. A coragem que sobrou para identificar o general Prantl faltou vergonhosamente na hora de nomear Seelig. Era a segunda vez que Zero Hora tropeçava clamorosamente diante do sequestro.
Treze dias antes, na noite de quarta-feira, 29 de novembro, o jornal tinha nas mãos um material explosivo: o depoimento de Camilo, o garoto de oito anos, filho de Lílian Celiberti, apontando o prédio do DOPS gaúcho como seu local de cativeiro na capital. Era um material exclusivo enviado de Montevidéu pelos repórteres da Agência CooJornal, da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. A reportagem havia sido comprada também por outros dois jornais, um paulista e outro brasiliense. O editor-chefe do jornal, Carlos Fehlberg, secretário de Imprensa do Palácio do Planalto no governo Médici (1969-1974) – o período mais truculento e repressivo da ditadura –, só baixou a reportagem para a oficina com uma insólita ressalva na abertura do texto:
Esta matéria, redigida pelo repórter Tomás Pereira, da CooJornal, está sendo
publicada hoje simultaneamente nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal de Brasília.
Não adiantou nada. Durante a madrugada a reportagem desapareceu misteriosamente na boca da rotativa. Foi substituída na manhã seguinte, quinta-feira, 30, por explicações pouco convincentes do editor-chefe aos irritados editores da redação. O leitor gaúcho, ao contrário dos outros brasileiros que leram jornal naquele dia, não ficou sabendo que sua própria polícia estava envolvida no sequestro binacional. A notícia só saiu na Zero Hora do dia seguinte, sexta-feira, 1° de dezembro, assim mesmo reverberando cautelosamente a reação no Legislativo gaúcho. “Debate na Assembléia sobre o envolvimento do DOPS no seqüestro”, dizia a cuidadosa chamada na primeira página do jornal.
Jogava a denúncia na boca do deputado Waldir Walter, do MDB, “baseando-se em matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo” – esclarecia o diário gaúcho, lavando as mãos com a própria incompetência jornalística.
Afinal, o jornal paulista tinha publicado sem ressalvas e sem medo a mesma reportagem da Agência CooJornal que a Zero Hora tinha comprado com exclusividade e esquecido na gaveta. Mais estranho ainda: Carlos Fehlberg era um jornalista experiente e um calejado editor político. Deixou a assessoria de imprensa do Planalto no final do governo Médici, em 1974, para assumir por 17 anos o comando do jornal que, sob sua chefia, tornou-se o mais importante do estado. Diante do sequestro, porém, ele parecia um iniciante.
Fehlberg voltou a tropicar feio em janeiro de 1979, quando a missão da OAB rastreava corajosamente o sequestro lá mesmo em Montevidéu. Dessa vez, a hesitação do editor-chefe foi denunciada por um subordinado direto, João Aveline, seu secretário de redação, que 20 anos depois revelou toda sua frustração num texto carregado de melancolia a partir do título: “A notícia não saiu. Velório na redação” [AVELINE, João. Macaco preso para interrogatório: retrato de uma época. Porto Alegre: AGE, 1999. p. 64-65].
Aveline lembrava que, após um doloroso período de censura, os jornais se atiravam em cima do caso do sequestro como se quisessem “recuperar o tempo perdido e ganhar a credibilidade dos leitores”. Até o velho Correio do Povo disputava notícias, tanto que publicou um “furo de reportagem” com as andanças da comissão da OAB gaúcha na capital uruguaia. Outra vez, graças à ousadia do CooJornal, que tinha um repórter ao lado dos advogados para repassar suas reportagens aos jornais brasileiros. Fehlberg resolveu combater o concorrente da Caldas Júnior com suas próprias armas: mandou comprar, com exclusividade, o material do repórter Tomás Irineu Pereira. Era uma nova denúncia do CooJornal, a partir da identificação de outros policiais do DOPS pelos filhos de Lílian Celiberti. O texto e as três fotos foram comprados por Zero Hora, com exclusividade para o Rio Grande do Sul (o mesmo material seria publicado também no Rio e em São Paulo). Conta Aveline:
A edição estava quase fechando quando o estafeta da cooperativa chegou com a preciosíssima encomenda, que foi logo encaminhada à oficina pelas mãos do diretor do jornal, jornalista Lauro Schirmer. Como eram momentos de grande expectativa vividos nas redações dos jornais, todos sabiam que no outro dia Zero Hora tinha novidades exclusivas sobre o sequestro dos uruguaios.
Mas nesse mesmo “outro dia” a redação parecia um velório. Na face de cada um, a máscara da tristeza. Em cada gesto, um total desânimo. A tal matéria-bomba não saíra. Folha de S.Paulo e O Globo publicaram. E com chamada de capa. Parece até que nós havíamos comprado a matéria para garantir sua ausência nos jornais do Rio Grande do Sul.
Zero Hora deu no dia seguinte ao dia seguinte. Provavelmente porque a responsabilidade, na ótica de quem vetou, seria de quem divulgou primeiro.
Não parece, mas a história narrada pela imprensa é uma lenta, articulada sucessão de dias que se sucedem, um dia seguinte ao outro. O fio caprichoso que une fatos, cenas, pessoas e motivações variadas acaba tecendo o relato que define tempos, homens e biografias. Mais cedo ou mais tarde, apesar dos atos de força, dos surtos de violência, das vacilações de caráter e das razões subjacentes e subalternas de uns e outros, a verdade acaba aflorando e prevalecendo.
A mesma imprensa que hesita, vacila e tropeça pode, no dia seguinte, reparar erros, remediar falhas, recontar momentos e resgatar a ética de sua função essencial – contar o que é, por que é, como é.
A crônica de máximas e mínimas da imprensa brasileira – antes, durante e depois do golpe de 1964 – mostra que sempre há o dia seguinte.
Contra todas as previsões, nossa obrigação é lembrar e contar.
Não importa o tamanho da treva, o sufoco do tempo, o chumbo do ar, a força da ventania.
Sempre haverá o dia seguinte.
O dia para lembrar. E contar.
Luiz Cláudio Cunha
Janeiro, 2010
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/
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